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Desde o Largo da Matriz, múltiplas vivências

A atual Praça Tiradentes já foi denominada Largo da Matriz. Desse lugar, podemos retomar múltiplas vivências de pessoas negras na cidade, em tempos diversos.

Vivências de escravidão

Na Matriz eram batizadas crianças nascidas de mulheres escravas e libertas. Até o final do XIX, o registro de batismo era o documento que oficializava a existência de uma pessoa, pois não havia então o registro civil, como conhecemos atualmente (o primeiro cartório de registro civil em Curitiba foi instituído em 1876). Na Matriz também eram registrados casamentos entre pessoas escravizadas. Os documentos a seguir evidenciam essas experiências vivenciadas na escravidão.

Registro de Batismo

Registro do Batismo de Nataria, filha de Luzia, escrava do Capitão Manoel Mendes Pereira. Foram padrinhos Manoel da Rocha e Brizida Sobrinha. O registro foi feito em 10 de fevereiro de 1723. MATRIZ NOSSA SENHORA DA LUZ DE CURITIBA. Livro de Batismos, n. 1, 1704-1737. (cópia digital disponível do CEDOPE – Centro de Pesquisa e Documentação da Universidade Federal do Paraná).

Registro de Casamento

Registro do casamento de Damiam, africano de Nação Mina, com Lizarda, crioula [nascida no Brasil], ambos escravos do Capitão Gaspar Correa Leite. O registro foi feito no dia 22 de janeiro de 1773 na Igreja Matriz de Nossa Senhora da Luz da Vila de Curitiba. Ventura, escravo do mesmo Capitão Gaspar Correa Leite e Mateus, escravo do Guarda-Mor Francisco Martins Lustosa foram testemunhas. Ambos assinam o registro com cruzes. MATRIZ NOSSA SENHORA DA LUZ DE CURITIBA. Livro de Casamentos, n. 3, 1762-1784, p. 4. (cópia digital disponível do CEDOPE – Centro de Pesquisa e Documentação da Universidade Federal do Paraná).

Famílias Escravas

Os registros de nascimento e de casamento de escravizados evidenciam a formação de famílias escravas. Embora nem sempre fosse fácil manter os membros dessas famílias juntos, isso foi um desafio enfrentado pelas pessoas que viviam na condição de escravidão. Desde a década de 1980, vários historiadores têm mostrado não só a existência, como a pujança da família escrava.

Vivências do Pós-Abolição: dignidade e cidadania

A Praça Tiradentes era um importante lugar de manifestações cívicas ocorridas na cidade. Nesses eventos, grupos que se organizavam em associações ou sociedades – de trabalhadores, imigrantes de uma etnia específica, de pessoas negras – expunham-se publicamente, objetivando demonstrar sua dignidade e sua união . A imagem abaixo mostra a importante presença de pessoas negras em uma dessas manifestações, ocorrida no início do século XX. É quase certo que fossem membros da Sociedade Operária Beneficente 13 de Maio (cuja localização é indicada nesse percurso). A foto mostra a forte presença de mulheres e crianças, o que nos faz pensar que a família fosse importante para esse grupo não apenas nas vivências domésticas, mas também nas ações que realizavam no espaço público, ajudando a compor a imagem de dignidade que procurava comunicar. Para essa comunicação, contribuía o apuro no vestir-se.

Pessoas negras em manifestação pública na Praça Tiradentes. Sem informação de data e de autoria. Acervo Casa da Memória – Fundação Cultural de Curitiba.

Na atualidade: ressignificações por dignidade e respeito

A Praça Tiradentes, desde muito, é um local importante para religiões matriz africana, em especial para o Candomblé. Um conjunto de árvores ali existente, desde a década de 1980, foram consagradas e em torno delas se realizam práticas religiosas importantes. Por muito tempo a essas práticas não foi dada publicidade, pelo temor de repressão. Ultimamente, os praticantes do candomblé vêm reivindicando o direito de realizar publicamente seus ritos, como ocorre com as demais religiões professadas na cidade.

Esses aspectos são tratados por Rômulo Miranda, em depoimento realizado no âmbito do Projeto Lugares de Axé, que iniciou o mapeamento de terreiros de Candomblé da cidade de Curitiba, descrevendo seis deles.

A praça também é local de prática de capoeira

A praça é um local de prática de capoeira. Informativo do Centro Cultural Humaitá. https://informativocentroculturalhumaita.wordpress.com/2019/01/02/roda-de-rua/

Sociedade Protetora dos Operários - mutualismo, sociabilidade e militância

Smart Park, estacionamento da Prefeitura no bairro São Francisco, completa 1 ano de existência. - Curitiba, 27/06/2022 - Foto: Daniel Castellano / SMCS. https://transito.curitiba.pr.gov.br/noticias/prefeitura/smartpark-sao-francisco-completa-um-ano/64443 (02/10/2023).

Nesse espaço, onde atualmente se encontra um estacionamento administrado pela Prefeitura Municipal de Curitiba, desde o final do século XIX ficava a sede da Sociedade Protetora dos Operários. Fundada em 1883, funcionou inicialmente na casa de um dos sócios fundadores - João Batista Gomes de Sá - à Rua do Mato Grosso (atual Comendador Araújo).

A “Operários”, como ficou mais conhecida, foi a primeira agremiação de trabalhadores de Curitiba, fundada em 1883, destinada a ser um espaço de convivência, sociabilidade e mobilização para operários da cidade. Manteve-se em funcionamento até o início dos anos 2000, mas sua atuação foi mais intensa na primeira metade do século XX. Dentre seus objetivos, estava a arrecadação de fundos para auxiliar os sócios em caso de doenças e morte, o que a caracterizava como uma agremiação mutualista. Mas também procurava responder a outras demandas, relacionadas ao lazer, à mobilização operária e a formação intelectual dos sócios, para o que contava com uma biblioteca e uma escola noturna. Com uma identidade fortemente vinculada ao trabalho, essa sociedade teve um caráter multiétnico. Nela trabalhadores negros conviviam com sócios de várias nacionalidades – alemães, poloneses, italianos. Os trabalhadores negros, entretanto, tiveram um papel central na instituição. Um dos próprios fundadores, o mestre de obras Benedito Marques, era um homem negro, em relação ao qual se faz menção ao fato de ter vivido e experiência da escravização.

Benedito Marques dos Santos. Jornal do Estado, 29/01/1992 – Biblioteca Pública do Paraná. Foto sem informação de autoria.

Outros trabalhadores negros tiveram importante participação na agremiação, entre eles João Batista Gomes de Sá, a quem já nos referimos, Hilário Munhoz de Souza Ribas e Vicente Moreira de Freitas. No caso de Moreira de Freitas, a vinculação à associação foi marcante não apenas em sua experiência pessoal, mas também de sua família: pelo menos dois de seus filhos - Palmyra e Mário Moreira de Freitas – foram atuantes na instituição nos anos 1910.

FONTES

Estatutos

Várias informações da Sociedade Protetora dos Operários, como de outras do gênero, podem ser obtidas por meio de seus estatutos, que constituem importantes fontes para o estudo de sua história. A imagem abaixo mostra quais os objetivos definidos pela agremiação e os critérios de inclusão, direitos e deveres dos sócios.

Estatuto da Sociedade Protetora dos Operários, 1883. Arquivo Público do Paraná, AP693, pp. 82-87. Foto de Pâmela Fabris.

Fotografias

Também as imagens da sociedade podem constituir fontes para estudo. Nas imagens a seguir, uma das coisas que se pode observar é que os grupos fotografados era composto unicamente por homens. O que mais se pode saber dessa agremiação por meio do registro de suas imagens?

Sócios em frente à sede da Sociedade Protetora dos Operários – Jornal do Estado, 29/01/1992 – Biblioteca Pública do Paraná, Seção Paranaense. Sem informação de autoria.

Nessa fotografia, é possível observar que há homens negros e que eles não ocupam o primeiro plano da foto. Um deles parece até esgueirar-se para se tornar visível à lente da câmera. Será que sua posição na imagem sugere alguma hierarquia racialmente constituída no âmbito do grupo?

Sócios em frente à sede da Sociedade Protetora dos Operários – foto sem informação de data e de autoria. Acervo Casa da Memória da Fundação Cultural de Curitiba.

No ano de 1917 os trabalhadores urbanos realizaram uma greve geral que paralisou várias cidades do país, entre elas, Curitiba. A imagem abaixo mostra o papel importante da Sociedade Protetora dos Operários nessa mobilização. Em frente à sua sede muitos trabalhadores reunidos durante o movimento grevista.

Fotografia sem informação de autoria. Acervo da Casa da Memória – Coleção Júlia Wanderley. Fundação Cultural de Curitiba.

Memórias

A Sociedade Protetora dos Operários era também um local de lazer e sociabilidades. Os bailes realizados anualmente na data de sua fundação – 28 de janeiro – compuseram as memórias de membros das famílias dos associados, como as da Sra. Índia Maria Freitas Fabre, neta de Vicente Moreira de Freitas, um dos primeiros associados da “Operários” e filha de Mário Moreira de Freitas, que foi orador da sociedade. No fragmento de uma entrevista que concedeu pouco antes de falecer, Dona Índia nos falou de quando frequentava os bailes que a Sociedade realizava nas datas de 28 de janeiro, nos aniversários de sua fundação:

Lembro, nossa você não pode imaginar como é que era o baile [emoção, entusiamo]...Ah, é o seguinte... eles faziam aqueles... aquela festa... era uma festa! Você foi, né [dirigindo-se a Nei, seu sobrinho, presente na entrevista], você lembra do baile do Operário né? Lembra? Faziam aquelas mesas todas decoradas assim, sabe? Em volta do salão, era uma maravilha de tudo que você pode imaginar... Tinha o buffet, que a gente fala, né. Depois do buffet que vinha o baile. Era uma maravilha!

[...]

... tinha banda! [animada] Mas não era essa banda que tem agora. Era banda, música assim... músicas daquela época assim... era muito bonita!

[...]

Era... era lotado.

A família dos sócios, iam toda a família né. Era...

[...]

O traje não era a rigor, mas era um traje que tinha que ir bem vestido, sabe? Se não fosse bem vestido tu não entrava.  Era bem vestido, mas não era a rigor não, entende? Bem clássico sabe, era bonito.

[...]

... dentro da sociedade, eu lembro, nossa era uma maravilha, era muito linda. Que pena que não tem fotografia, muito lindo lá dentro, muito linda a sociedade e agora deve ser eu não sei...

[intervenção de entrevistadora]: Agora ela foi quase demolida praticamente. Não existe mais nada quase.

Lá?! [espantada] . IF – Ai que pena. [emoção]...

FABRE, India Freitas. Entrevista a Joseli Mendonça, Pâmela Fabris, Nei Moreira de Freitas e Carolina Moiséis. Íntegra em: AfroSul. Afrodescendentes na Região Sul. Biografias, trajetórias associativas e familiares. 2020. https://afrosul.com.br/india-maria-freitas-fabre/

As memórias dos bailes do 28 de janeiro na Sociedade Protetora dos Operários estão presentes em outro ramo da família de Vicente Moreira de Freitas. A fotografia abaixo, guardada em álbum de família, mostra Moacir Brito, neto de Vicente, em um desses eventos comemorativos.

Foto sem informação de autoria e de sem data [provavelmente dos anos 1960]. Acervo particular de Maurício Brito.

Para saber mais sobre a Sociedade Protetora dos Operários, você pode consultar:

FABRiS, Pâmela B. Sociedade Protetora dos Operários (Curitiba) – Verbetes. Dicionário AfroSul. https://afrosul.com.br/sociedadeproteroraoperarios/ .

MENDONÇA, J. M. N. ; FABRIS, P. B. . Os trabalhadores têm côr: militância operária na Curitiba do Pós-Abolição. In: RIBEIRO, Luiz Carlos; GRUNER, Clóvis. (orgs.). Utopias e experiências operárias – ecos da greve de 1917 . São Paulo: Intermeios, 2019, p. 75-92.

MENDONÇA, J. M. N., FABRIS, P. B. Freitas e Brito: trajetória de uma família negra na Curitiba do final do século XIX e início do XX. MENDONÇA, J. M. N.; TEIXEIRA,L e MAMIGONIAN, Beatriz G. Pós-Abolição no Sul do Brasil: associativismo e trajetórias negras. Salvador: Sagga, 2020. https://afrosul.com.br/pos-abolicao-no-sul-do-brasil/ (02/10/2023).

MOISES, Carolina Marchesin. Hilário Munhoz de Souza Ribas (verbete). Pessoas – Dicionário Afrodescendentes na Região Sul https://afrosul.com.br/hilario-munhoz-de-souza-ribas/

RIBEIRO, Luiz Carlos. Memória, trabalho e resistência em Curitiba (1890-1920). 263f. Dissertação (Mestrado em História – USP), São Paulo, 1985.

VASCO, Edimere. S.A cultura do trabalho na Curitiba de 1890 a 1920. 122 f. Dissertação (Mestrado em História) – Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2006 FONSECA, Ricardo Marcelo e GALEB, Maurício. A Greve Geral de 1917 em Curitiba – Reconstituição da Memória Operária. Curitiba: Factum, 2017.

Como fazer a referência deste conteúdo: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ. PROJETO DE EXTENSÃO AFROCURITIBA. https://afrocuritiba.ufpr.br/mapa/ . Acesso em [data do acesso].

Se você tiver mais informações, materiais ou referências sobre esse local e quiser colaborar, envie pra afrocuritibapercurso@gmail.com .

Devoção Religiosa e Sociabilidades

Edificação atual da Igreja do Rosário dos Pretos de São Benedito, sem data, sem autoria. https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Igreja_do_Ros%C3%A1rio,_Curitiba,_PR.JPG (acesso 24/04/2020).

A edificação original da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de São Benedito foi construída, ao que consta, em 1737, por duas irmandades, das quais participavam pessoas negras. Para que uma irmandade funcionasse, era preciso encontrar uma igreja que a acolhesse ou construir uma própria. Seu atual prédio da igreja não é o original, que foi demolido em 1937 e reconstruído da forma como o vemos hoje.

Primeira edificação da igreja, representada por Oswald Lopes. Igreja do Rosário. Óleo sobre tela, 70x96,5, 1938, acervo Museu Oscar Niemayer (Curitiba). Essa fotografia da obra, sem título e sem data, está divulgada em FOTOGRAFANDO CURITIBA (Página Facebook) http://www.fotografandocuritiba.com.br/2016/09/igreja-do-rosario-dos-homens-pretos-de.html . Acesso em 23/04/2020.

Edificação original da Igreja do Rosário dos Pretos de São Benedito, vista da atual Praça Garibaldi. Fotografia sem data e sem autoria. CASA DA MEMÓRIA - FUNDAÇÃO CULTURAL DE CURITIBA. Na fotografia não consta informação de data e autoria.

Cartão Postal sem data e sem autoria, com a imagem da edificação original da Igreja do Rosário e anotações de Júlia Wanderley, que a considerava a “mais antiga da cidade”. CASA DA MEMÓRIA - FUNDAÇÃO CULTURAL DE CURITIBA. Acervo Júlia Wanderley.

A Igreja, então, abrigava as pessoas que faziam parte das irmandades de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito. Mas afinal, o que era uma irmandade?

Desde o período colonial, principalmente a partir dos séculos XVII e XVIII, era comum na América Portuguesa que as pessoas se agregassem em irmandades religiosas, instituições leigas (formadas por pessoas não ligadas ao clero) organizadas em torno da devoção a algum santo ou santa. Estes grupos prestavam auxílio aos irmãos em dificuldades, com recursos providos por eles próprios, acumulados geralmente pelas taxas pagas quando da admissão e de contribuições anuais. A mais importante dentre elas foi a Irmandade Santa Casa de Misericórdia, que atendia doentes, recebiam expostos (crianças abandonadas) e leprosos.

Naquela sociedade, na qual as hierarquias eram rígidas, muitas irmandades não aceitavam pessoas de origem ou ascendência africana, tampouco escravizadas. Esses grupos, por vezes, criaram irmandades específicas, que os acolhessem. Isso não significa que essas irmandades fossem mais “democráticas” – uma ideia que nem vigorava à época -, pois muitas delas também impunham restrições à entrada de grupos específicos. Essas restrições podiam estar relacionadas, ao grupo étnico. Havia, por exemplo, irmandades que só aceitavam africanos originários de Angola, outros que só aceitavam jejes – um grupo da África Ocidental. Outras vezes, não se restringia o ingresso de grupos específicos, mas sim o exercício de cargos da mesa diretora. As Irmandade do Rosário, que se formou em Curitiba no século XVIII, embora tivesse importante participação de pessoas negras - escravizadas, livres e libertas –,  acolhia como irmãos também pessoas brancas, inclusive senhores de escravos.

Pertencer a uma irmandade implicava em distinção social, além de ser uma medida de segurança em relação ao futuro. Entre as obrigações impostas aos irmãos estava a de ampararem-se mutuamente em caso de doenças e prover a todos os participantes um sepultamento cristão. Por vezes, a compra da alforria de irmãos escravizados era também um objetivo das irmandades das quais eles faziam parte; na segunda metade do século XIX, quando as ideias abolicionistas se fortaleceram, esse objetivo foi mais bastante valorizado, e as irmandades configuraram-se como importantes mediadoras na emancipação de escravizados. As irmandades eram também lugares de celebração e festividades, realizadas para os santos de devoção, e espaços de convivência e de construção de sociabilidades para os que nelas congregavam. No Brasil, as devoções mais populares entre os negros foram as de Nossa Senhora do Rosário, de São Benedito, São Sebastião, São Elesbão, N. S. do Carmo, Santa Ifigênia. Por todo o país até hoje existem igrejas que no passado foram construídas por irmandades de devoção a esses santos e permanecem associadas à história da população negra nas localidades. Esse é o caso da A Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos e de São Benedito de Curitiba.

Fontes

O Compromisso

Para funcionar, as irmandades tinham de submeter às autoridades (coloniais e, depois, imperiais) um documento chamado Compromisso, no qual dispunham os objetivos que teriam de cumprir e a maneira como se organizariam. A seguir, transcrevemos um pequenos trecho do Compromisso das Irmandades de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito de Curitiba, aprovado em 1851 por uma autoridade da Província de São Paulo, da qual Curitiba fazia parte à época. Esse fragmento evidencia alguns aspectos sobre a maneira como os irmãos compreendiam a irmandade, como era feita a admissão de um irmão e algumas obrigações que os irmãos assumiam ao adentrar na instituição:

“Em nome da Santíssima Trindade, Padre, Filho, e Espírito Santo Três pessoas distintas, e um só Deus verdadeiro, e da Virgem Senhora do Rosário, e Glorioso S. Benedito, os quais tomamos por nossos advogados n’esta empresa; e por este princípio lhes pedimos que roguem a Deus por nós a fim de que tudo quanto ordenamos nos Capítulos seguintes, e seja para maior honra, e glória Sua, e aumento de nossa Santa Fé, e salvação de nossas almas assim seja.

[...]

Capítulo 1º  Do modo que se há de praticar na recepção dos Irmãos. Toda pessoa que quiser ser Irmão de qualquer destas duas Irmandades de Nossa Senhora do Rosário, e do Glorioso S. Benedito se apresentará em mesa das mesmas Irmandades, e indicará ao Presidente por palavras, ou por petição que quer ser recebido por Irmão; o qual conhecendo que é Cristão, e informado de seus costumes o aceitará, e mandará pelo Escrivão lançar seu nome no livro de grades para isso destinado, e depois de lidos os Capítulos do presente Compromisso para serem por ele obedecidos, e observados, e dará cada um por sua entrada trezentos e vinte réis, e no fim do ano dará seu anual cento e sessenta réis, os quais se pagarão no dia da festividade da Gloriosa Virgem, e do Glorioso Santo, cuja esmola será cobrada pelo Irmão Procurador, que será obrigado a dar contas delas para serem por receita feita pelo Irmão Escrivão ao Irmão Tesoureiro da Irmandade, e o Irmão que se reconhecer remisso na paga e o não fizer sem motivos atendíveis será riscado e expulso da Irmandade salvo porém se cair em pobreza, e nessa caso será conservado, e gozará dos benefícios da Irmandade.

Capítulo 2º - Morrendo algum Irmão ou Irmã, se dará recado ao Irmão que servir de Procurador, o qual será obrigado a dar parte a todos os Irmãos, que se acharem na cidade, ou perto dela, e correrá a Campa [sineta, pequeno sino] da Irmandade para se reunirem na Igreja da mesma Senhora, d’onde sairão com a cruz da Irmandade, [a] qual levará o Irmão Sacristão, e os mais Irmãos à Tumba, e se necessário for, e com toda a modéstia e compostura irão em corpo da irmandade com suas opãs [vestimentas usadas pelos irmãos e irmãs; capas] à porta, onde estiver o corpo do Irmão defunto, e feita a encomendação pelo Reverendo Pároco, o carregarão e acompanharão até a sepultura, e todo o Irmão que for remisso em ir aos acompanhamentos será expulso, e riscado da Irmandade; exceto os que tiverem legítimo impedimento, e serão obrigados a levar velas em ditos acompanhamentos e procissões.

[...]

Capítulo 4º - Nos dias vinte e seis de dezembro, tem sido costume fazer a Irmandade os festejos solenes de Nossa Senhora do Rosário [...] Capítulo 16º - Nos dias vinte e sete de dezembro tem sido sempre costume festejar solenemente o glorioso S. Benedito [...].

História e Memória

Na década de 1880, a Igreja do Rosário dos Homens Pretos de São Benedito tornou-se a Matriz de Curitiba, cuja edificação passou por uma reforma drástica, que inviabilizava a frequência de pessoas. Ampliaram-se, assim, os grupos sociais que a frequentavam a "igreja dos pretos". Talvez se inicie nesse tempo um processo de apagamento da relação entre a velha igreja e as pessoas negras de Curitiba.

Na primeira metade do século XX, a Igreja era utilizada para velar os falecidos, pelo quê passou a ser designada “Igreja dos Mortos”. Certamente isso ocorria pela maior proximidade e acessibilidade ao cemitério, ao qual se chegava percorrendo a rua lateral, à esquerda na foto (atual Trajano Reis).

CURITIBA NAQUELES IDOS (BLOGSPOT). http://curitibanaquelesidos.blogspot.com/2015/01/igreja-do-rosario-semana-santa-de-1934.html . acesso em 23/04/2020. A publicação informa que a imagem foi produzida na Semana Santa de 1934, quando da Procissão do Senhor Morto.

No ano de 1937, ano de demolição do templo colonial e edificação do novo, a Igreja do Rosário foi objeto de várias matérias nos jornais locais. A seguir, uma delas:

O DIA. A Nova Igreja do Rosário. http://memoria.bn.br/DocReader/092932/34884. Acesso em 1122/08/2021.

É interessante observar que a nota, ao fazer o histórico da Igreja, além de incidir em imprecisões – como a que considera que foi o primeiro templo da cidade – não a associa à população negra de Curitiba, tampouco às irmandades que a construíram. Sobre os negros e as irmandades recaia já o esquecimento, que orientara o jornalista e para o qual ele próprio contribuiu, com a memória que constituía e veiculava por meio do jornal.

Essa memória, entretanto, não foi apagada pelas pessoas negras cuja história se conectava com a história da igreja. A cada ano, até hoje em dia, a data da lei que proibiu a escravização de pessoas no Brasil é relembrada pelos sócios da Sociedade Beneficente 13 de Maio (ver ponto no mapa) com uma missa celebrada na Igreja do Rosário e São Benedito.

DIÁRIO DA TARDE, 12 de maio de 1913. http://memoria.bn.br/DocReader/800074/17039. acesso em 11/09/2022.

Atualmente, na data de 20 de novembro, pessoas de religiões de matriz africana lavam as escadarias da Igreja, em comemoração à data da Consciência Negra.

PREFEITURA MUNICIPAL DE CURITIBA. www.curitiba.pr.gov.br/noticias/festa-do-rosario-leva-o-axe-do-povo-negro. Acesso em 09/09/2023.

Manifestações antirracistas em defesa da justiça racial também recorrem ao espaço da igreja, que é reconhecido como um território de resistência negra na cidade.

Manifestante pede que seja feita justiça ao trabalhador congolês Moïse Kabagambe, assassinado por motivação racista em outubro de 2022. JORNAL BRASIL DE FATO. GIORGIA PRATES. https://www.brasildefato.com.br/2022/02/07/ato-por-justica-para-moise-foi-realizado-em-igreja-simbolica-para-populacao-negra-de-curitiba . Acesso em 09/09/2023.

Se você quiser saber mais sobre esse assunto, pode acessar as fontes que consultamos para elaborar esse conteúdo e outras mais que listamos a seguir.

 A Carta de confirmação do compromisso das Irmandades de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito da cidade de Curitiba. foi publicada no Boletim do Arquivo Público do Paraná. Ano 02, n 01, 1977, p. 29 e seguintes.

 A produção acadêmica sobre as irmandades de pessoas negras é bastante extensa e enseja um intenso debate sobre o significado que essas instituições tiveram na sociedade escravista. A seguir, apenas alguns títulos:

Abordagens mais geral das irmandades:

REIS, João José. A Morte é Uma Festa. Ritos fúnebres e revolta popular no Brasil no século XIX. São Paulo: Companhia das Letras. 1991 e RUSSEL-WOOD, A. J. R., Escravos e libertos no Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

Um estudo sobre a Irmandade do Rosário de Curitiba: LIMA, Carlos A.M. Escravos da Senhora do Rosário: Irmandades negras na América Portuguesa. In: MOURA, Ana Maria da Silva e LIMA, Carlos A.M. Devoção & Incorporação – Igreja, escravos e índios na América Portuguesa. Curitiba, Peregrina, 2002.

Um texto sintético as irmandades negras em geral e analítico sobre a Irmandade do Rosário na cidade de Desterro (atual Florianópolis): MALAVOTA, Claudia Mortari. A Irmandade do Rosário e seus Irmãos africanos, crioulos e pardos. https://moodle.ufsc.br/pluginfile.php/545530/mod_resource/content/2/B4%20Irmandade%20Rosario%20pdf.pdf

Como fazer a referência deste conteúdo: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ. PROJETO DE EXTENSÃO AFROCURITIBA. https://afrocuritiba.ufpr.br/mapa/ . Acesso em [data do acesso].

Se você tiver mais informações, materiais ou referências sobre esse local e quiser colaborar, envie pra afrocuritibapercurso@gmail.com

Cadeia e Pelourinho: histórias de escravidão

Na atual Praça Borges de Macedo, duas referências nos dizem algumas coisas sobre as experiências vividas por pessoas escravizadas na cidade de Curitiba.

I – Pelourinho

Um deles é o monumento que rememora o pelourinho.

Placa instalada em 1968, na praça José Borges de Macedo, no local onde supostamente foi erguido o Pelourinho de Curitiba, no século XVII. Sem autoria, sem data. http://www.curitiba-parana.net/patrimonio/pelourinho.htm

Erigido em Curitiba em 1698, antes mesmo que fosse instalada a Câmara - o que ocorreu somente em 1693 -, o Pelourinho era, antes de tudo, um símbolo da presença da autoridade régia na localidade, responsável pela aplicação da Justiça, realizada pelos membros das Câmaras e outras autoridades, em nome do Rei. O Pelourinho era local de aplicação de penas e também de divulgação de medidas de governo. Bastante diferente do que é admitido pelo Direito liberal, que atualmente é exercido na maior parte do mundo ocidental, no Antigo Regime (período entre séculos XVI e XVIII na Europa e nos domínios europeus na América) as penalidades compreendiam muitas vezes o castigo físico, a mutilação e a morte com suplício. Também distinto do que preconiza o Direito liberal, as penas eram atribuídas de acordo com o estado (status) de quem cometia o delito: um fidalgo não recebia a mesma pena que um “homem do povo” - um plebeu –, mesmo que ambos tivessem cometido o mesmo delito. Em geral, o castigo físico aplicado no Pelourinho – considerado vergonhoso, vexatório – era destinados às pessoas que ocupavam status inferiores na hierarquia daquela sociedade. Entre eles, os escravizados. Mas não apenas eles. Também pessoas de condição livre podiam ser apenados com açoites ou enforcamento no Pelourinho.

Na memória contemporânea, entretanto, o Pelourinho tornou-se um símbolo da escravidão, evocando a violência da penas que ali eram aplicadas em pessoas escravizadas.

FONTES

1. Dicionários publicados nos séculos XVIII e XIX assim definiram a palavra Pelourinho:

É uma espécie de coluna, em algum lugar público da Cidade, ou Villa, em sinal de jurisdição, que tem de exercitar justiça com pena de morte. No seu Glosário quer Du Cange, que Pelourinho, a que os Franceses chamam Pilorium, ou Spilorium, que antigamente em Latim baixo valia o mesmo, que sinal de justiça com pena capital. Outros derivam Pelourinho de Pilar. Pelourinho responde ao que antigamente em Roma se chamava Coluna, e algumas vezes Coluna Menia, porque há certo homem, chamado Menio, mandou levantar junto das suas casas uma coluna, sobre a qual em ocasião de espetáculos públicos, armava com tábuas um palanque, de onde os via. E como a dita coluna estava em uma praça de concurso, ladrões, criados, maganos e os que não tinham com que pagar as suas dívidas, por sentença dos juízes, eram condenados à dita coluna, onde com grande ignominia ficavam expostos ao ludibrio do povo, como hoje também se veem alguns delinquentes, presos nas argolas dos pelourinhos. (Dicionário de Raphael Bluteau, publicado em 1712) Coluna de pedra. picota posta em alguma Praça de Villa, ou Cidade, à qual se ata pela cintura o preso, que se expõe à vergonha, ou é açoitado; tem argolas, onde se pode enforcar, e dar tratos de polé; e ponta de ferro de por cabeças; nele se fixam os editos. (Dicionário de Antonio de Moraes Silva , publicado em 1813).

MEMÓRIA

Após a Independência, as municipalidades tenderam a demolir os pelourinhos, uma vez que eles eram associados ao domínio português. Um dos poucos sobreviventes fica no Estado do Paraná, na cidade de Paranaguá.

MILLAN, Polliana. Centro Histórico de Paranaguá É Tombado. Gazeta do Povo, 03/12/2009.

HISTÓRIA E MEMÓRIA

Se o Pelourinho servia para aplicação de penas de pessoas livres tanto quanto de escravos, porque então, na memória contemporânea, o Pelourinho é tão diretamente associado à opressão praticada contra os escravizados, na forma dos castigos físicos? Possivelmente porque de fato muitas pessoas escravizadas tenham sido apenadas com açoites ou enforcamento nos tantos pelourinhos erguidos na América Portuguesa.

Os documentos a seguir podem ajudar a formular outra hipótese para explicar essa relação entre pelourinho e escravidão na memória contemporâneas.

1.

Constituição Política do Império do Brasil, elaborada por um Conselho de Estado e outorgada pelo Imperador D. Pedro I, em 25.03.1824. (com grafia atualizada)

Carta de Lei de 25 de Março de 1824

[...]

TITULO 2º

Dos Cidadãos Brasileiros.

Art. 6. São Cidadãos Brasileiros

I. Os que no Brasil tiverem nascido, quer sejam ingênuos [nascidos livres], ou libertos, ainda que o pai seja estrangeiro, uma vez que este não resida por serviço de sua Nação.

II. Os filhos de pai Brasileiro, e os ilegítimos de mãe Brasileira, nascidos em país estrangeiro, que vierem estabelecer domicílio no Império.

III. Os filhos de pai Brasileiro, que estivesse em país estrangeiro em serviço do Império, embora eles não venham estabelecer domicílio no Brasil.

IV. Todos os nascidos em Portugal, e suas Possessões, que sendo já residentes no Brasil na época, em que se proclamou a Independência nas Províncias, onde habitavam, aderiram á esta expressa, ou tacitamente pela continuação da sua residência.

V. Os estrangeiros naturalizados, qualquer que seja a sua Religião. A Lei determinará as qualidades precisas, para se obter Carta de naturalização.

[...]

TITULO 8º

Das Disposições Gerais, e Garantias dos Direitos Civis, e Políticos

dos Cidadãos Brasileiros.

[...]

Art.179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Políticos dos Cidadãos Brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império, pela maneira seguinte.

[...]

XIX. Desde já ficam abolidos os açoites, a tortura, a marca de ferro quente, e todas as mais penas cruéis

[...]

********************

2.

Lei de 16 de dezembro de 1830 – Manda executar o CODIGO CRIMINAL DO IMPERIO DO BRAZIL

TITULO II Das Penas

CAPITULO I – Da Qualidade das Penas, e da maneira como se hão de impor e cumprir

[...] Artigo 60. Se o réu for escravo, e incorrer em pena, que não seja a capital, ou de galés, será condenado na de açoutes, e depois de os sofrer, será entregue a seu senhor, que se obrigará a trazê-lo com ferro, pelo tempo e maneira que o Juiz designar.

O número de açoutes será fixado na sentença; e o escravo não poderá levar por dia mais de cinquenta.

[...]

******************************

3.

Lei n. 4 de 10 de junho de 1835.

Determina as penas com que devem ser punidos os escravos que matarem, ferirem ou cometerem outra qualquer ofensa física contra seus senhores, e estabelece regras para o processo.

A Regência Permanente em Nome do Imperador o Senhor D. Pedro Segundo Faz saber a todos os súditos do Império que a Assembleia Geral Legislativa Decretou, e Ella Sancionou a Lei seguinte:

Art. 1º Serão punidos com a pena de morte os escravos ou escravas, que matarem por qualquer maneira que seja, propinarem veneno, ferirem gravemente ou fizerem outra qualquer grave ofensa física a seu senhor, a sua mulher, a descendentes ou ascendentes, que em sua companhia morarem, a administrador, feitor e ás suas mulheres, que com eles viverem.

Se o ferimento, ou ofensa física forem leves, a pena será de açoutes a proporção das circunstâncias mais ou menos agravantes.

[...]

Art. 4º Em tais delitos a imposição da pena de morte será vencida por dois terços do numero de votos; e para as outras pela maioria; e a sentença, se for condenatória, se executará sem recurso algum.

Art. 5º Ficam revogadas todas as Leis, Decretos e mais disposições em contrario.

[...]

*************************

4

Lei nº 3.310 de 15 de outubro de 1886.

Revoga o artigo 60 do Código Criminal e a Lei nº 4 de 10 de junho de 1835, na arte em que impõem a pena de açoutes

D. Pedro II, por Graça de Deus e Unânime Aclamação dos Povos, Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil: Fazemos saber a todos os Nossos Súditos que a Assembleia Geral Decretou e Nós Queremos a Lei seguinte:

Art. 1º São revogados o artigo 60 do Código Criminal e a Lei nº 4 de 10 de junho de 1835, na parte em que impões a pena de acoutes.  

Ao réu escravo serão impostas as mesmas penas decretadas pelo Codigo Criminal e mais legislação em vigor para outros quaisquer delinquentes, segundo a espécie dos delitos cometidos, menos quando forem essas penas de degredo, de desterro ou de multa, as quais serão substituídas pela de prisão; sendo nos casos das duas primeiras por prisão simples pelo mesmo tempo para elas fixado, e no de multa, si não for ela satisfeita pelos respectivos senhores, por prisão simples ou com trabalho [...]

Art. 2º Ficam revogadas as disposições em contrario.

[...]

***********************

5

Postura da Câmara Municipal de Curitiba – maio de 1829

[...]

Capítulo I – Artigo primeiro – Todo indivíduo livre, que for achado com armas de defesas de dia ou de noite, como faca de ponta, pistolas, bacamartes, e etc dentro desta Villa, suas Freguesias, Capelas e Arraiais, perder tais armas com que for apanhado [...] e pagar uma multa pecuniária de dois mil réis [...] ou seis dias de prisão se não tiver com que satisfazer a mencionada multa. Artigo segundo. O escravo que for achado com ditas armas, além da perda delas, será publicamente castigada com vinte e cinco açoites [...]

II – Cadeia

Na mesma praça que atualmente é denominada Borges de Macedo, esteve localizada a cadeia de Curitiba entre 1726 e 1898, em um prédio que abrigava também a Câmara Municipal. Ali, tiveram lugar várias histórias de pessoas escravizadas.

Gravura em que aparecem a Igreja Matriz e a Casa da Câmara e Cadeia. Apresentada no Livro dos 300 anos. Curitiba, publicado em 1993 pela Câmara Municipal da cidade. Sem informação de data e de autoria.

Imagem mostra o prédio da Cadeia. Sem autoria, 1897. Acervo da Fundação Cultural de Curitiba, Coleção João Bley do Amaral.

As fontes a seguir, evidenciam que a Cadeia era um local de aprisionamento de escravizados que fugiam de seus senhores.

Dezenove de Dezembro 23 setembro de 1857. http://memoria.bn.br/DocReader/416398/1337 (06/04/2020).

Dezenove Dezembro 24 novembro 1854 http://memoria.bn.br/DocReader/416398/160 (06/04/2020).

HISTÓRIA

Em sua dissertação de mestrado, a historiadora Noemi Santos da Silva narra a seguinte história (texto adaptado):

Uma experiência singular ocorreu na Cadeia de Curitiba no final da década de 1870 e na de 1880. Na opinião das autoridades provinciais de então, as cadeias do Paraná não cumpriam a função de recuperar os detentos para a sociedade, sendo necessário melhorar estrutura carcerária. Para tanto, no final de 1878 e no ano de 1879, algumas salas da cadeia vinham sendo reformadas e uma delas deveria servir ao funcionamento de uma escola para os presos.

Naquela época, de acordo o chefe de polícia, havia na cadeia 29 detentos, e os escravizados representavam 26% da população carcerária. No geral, estes haviam sido condenados condenados por homicídios ou tentativa de homicídio, segundo a mesma autoridade. Em setembro de 1879, a escolada cadeia foi inaugurada. Pelo regulamento aprovado no ano de abertura, o funcionamento das aulas ocorreria das 12 às 15 horas da tarde, com exceção dos domingos e dias santos. Para exercer a função de professor, foi escolhido um dos detentos, considerado pelo chefe de polícia o “mais habilitado frente aos outros”. Tratava-se de Pedro Antonio, um dos presos mais antigos da cadeia que, segundo a autoridade, era um autodidata que havia aprendido a manejar as letras sozinho. Estava ali desde 1853, quando fora transferido de Castro, para cumprir pena de prisão perpétua com trabalho (galés). Naquele ano Pedro Antonio tinha 19 alunos, dois deles escravos - Manoel e Maximiniano, ambos também condenados a galés perpétuas, por crimes também praticados em Castro. Somente homens frequentavam as aulas, mesmo havendo mulheres na prisão, dentre elas duas escravas: Ignácia e Dorothea. É interessante registrar que entre os detentos, um homem escravo era o que tinha as melhores condições de letramento para exercer a função de professor, ensinando aos demais o que sabia. A função Pedro, entretanto, teve curta duração. Em 1880, quando visitou a escola, o Presidente da Província - Souza Dantas Filho – considerou  que não era adequado que as aulas da cadeia fossem regidas por um escravo que, a seu ver, não possuía a “força moral necessária a um mestre”. Pedro Antonio foi então demitido da função, e em seu lugar foi nomeado um professor público. Sob a regência desse professor, ao menos no primeiro ano, o número de alunos na escola ficou reduzida à quase a metade. Quanto a Pedro Antonio, sabemos que fugiu da prisão em 1881, depois de ter por quase três décadas ali cumprido sua pena.

Um pouco mais... Do outro lado da praça, um espaço de trabalho

Nos fundos da Cadeia ficava o mercado, exatamente no local onde atualmente se encontra o Paço da Liberdade. Muitos estudos que contemplam o comércio em áreas  urbanas no século XIX mostram a importância da população negra (escravizada e liberta) no comércio de alimentos. Assim, podemos imaginar que aquela região, nos fundos da Cadeia, tenha sido um espaço importante de trabalho de pessoas negras de Curitiba. As imagens a seguir mostram o mercado e suas transformações ao longo do século XIX.

Cartão postal do Mercado Municipal, no início do século XX. Acervo da Casa da Memória – Fundação Cultural de Curitiba – Acervo Júlia Wanderley.

Paço Municipal em construção no interior do Mercado, com a fachada reconfigurada por uma reforma realizada em 1906. A construção do edifício no qual funcionaria a Prefeitura e a Câmara de Vereadores de Curitiba iniciou em 1912 e finalizou em 1916, tendo sido realizada no âmbito das reformas urbanas que visavam o “embelezamento” da cidade, promovidas pela gestão de Cândido de Abreu. Foto sem informação de autoria e de data. Acervo do Instituto Histórico, Geográfico e Etnográfico Paranaense. Reproduzido no livro História e Uso do Paço da Liberdade. Reproduzido em https://issuu.com/fecomerciopr/docs/num1/5 (03/04/2020).

Para saber mais, você pode consultar as fontes que utilizamos para produzir esse material, e outras mais que sugerimos a seguir:

Legislação que determinou a pena de açoites e pena de morte no Brasil pós-Independência:

BRASIL. Lei n. 4 de 10 de junho de 1835.

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM4.htm (02/04/2020)

BRASIL. Constituição Política do Império do Brasil, elaborada por um Conselho de Estado e outorgada pelo Imperador D. Pedro I, em 25.03.1824. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao24.htm

BRASIL. Código Criminal do Império do Brasil. Coleção das Leis do Império – atos do Poder Executivo, 1830. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM-16-12-1830.htm#art60

BRASIL. Lei nº 3.310 de 15 de outubro de 1886. Coleção das Leis do Império do Brasil, 1830. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM4.htm

PEREIRA, Magnus Roberto de Mello (org.). Posturas Municipais do Paraná, 1829 a 1895. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 2003.

Dicionários do séculos XVIII e XIX:

BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico ... Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712 - 1728. Disponível: http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/edicao/1 (02/04/2020)

SILVA, Antonio Moraes. Diccionario da lingua portugueza - recompilado dos vocabularios impressos ate agora, e nesta segunda edição novamente emendado e muito acrescentado, por ANTONIO DE MORAES SILVA. Lisboa: Typographia Lacerdina, 1813. http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/edicao/1 (02/04/2020)

VAINFAS. Justiça (verbete). Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808).  Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2001.

Sobre a memória que associa o Pelourinho à escravidão, ver:

REIS, João José. Entrevista à jornalista Regina de

Sá. Mundo Afro. http://mundoafro.atarde.uol.com.br/tag/pelourinho/ (04/04/2020)

Sobre a Cadeia:

MARTINS, João Cândido. A primeira sede da Câmara Municipal de Curitiba (1726-1900). CAMARA MUNICIPAL DE CURITIBA. Notícias do Legislativo, 2013. https://www.cmc.pr.gov.br/ass_det.php?not=20401 (03/04/2020).

GRUNER, Clóvis. Paixões torpes, ambições sórdidas: transgressão, controle social, cultura e sensibilidade moderna em Curitiba, fins do século XIX e início do XX. Tese de Doutorado (História), Universidade Federal do Paraná, 2012. https://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/28114/R%20-%20T%20-%20CLOVIS%20GRUNER.pdf?sequence=1See%20More (03/04/2020)

HOERNER JR., Valério. Ruas e Histórias de Curitiba. Valério Hoerner Júnior. Curitiba: Ed. Artes & Textos, 2002.

Sobre a história de Pedro Antonio como professor na cadeia (com a referência das fontes consultadas pela autora): SILVA, Noemi Santos da. O “batismo na instrução”: projetos e práticas de instrução formal de escravos, libertos e ingênuos no Paraná Provincial. Dissertação de Mestrado (História), Universidade Federal do Paraná, 2014.  https://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/36317/R%20-%20D%20-%20NOEMI%20SANTOS%20DA%20SILVA.pdf?sequence=1&isAllowed=y .

Como fazer a referência deste conteúdo: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ. PROJETO DE EXTENSÃO AFROCURITIBA. https://afrocuritiba.ufpr.br/mapa/ . Acesso em [data do acesso].

Escravidão e liberdade nos anúncios de jornal

A atual Rua XV de Novembro já foi Rua das Flores e Rua da Imperatriz . Ali, no século XIX, ficava o jornal O Dezenove de Dezembro. Fundado em 1854, logo após a emancipação da Província do Paraná, o jornal divulgava as medidas do governo provincial, mas também publicava notícias e anúncios variados. Dentre os anúncios, os de venda e fuga de pessoas escravizadas podem evidenciar vários aspectos relacionados à escravidão.

Fontes Históricas

I - Anúncio de venda de escravizados

O Dezenove de Dezembro. 1º de abril de 1854. Este anúncio, publicado no primeiro número do jornal, além de demonstrar que as pessoas escravizadas eram compradas e vendidas, evidencia que a prática da escravidão ilegal, realizada no Brasil escravista, ocorreu também no Paraná. Esse rapaz que estava sendo vendido era africano – o que designa o termo “de nação”. Pela idade declarada, pode-se saber que ele nasceu por volta de 1830. Como a lei que proibiu que africanos fossem introduzidos no Brasil como escravos vigorou a partir de 1831, para ter sido trazido legalmente como escravo no país ele deveria ter chegado com idade máxima de 1 ano. Como isso é pouquíssimo provável, esse trabalhador de engenhos de mate foi certamente um africano ilegalmente escravizado, como outros centenas de milhares de africanos criminosamente escravizados com a conivência do Estado Imperial brasileiro.

II - Anúncios de Fuga

Os anúncios de fuga eram muito detalhados, pois visavam fazer com que a pessoa procurada fosse reconhecida. Eles dizem sobre as experiências de escravos: os castigos - evidenciados pelas marcas - bem como aptidões, ofícios e estratégias para se livrarem de um domínio ao qual se contrapunham.

O Dezenove de Dezembro. 5 de fevereiro de 1881.

O Dezenove de Dezembro, 23 de setembro de 1854.

O Dezenove de Dezembro. 17 de dezembro de 1879.

III - Ex-escravizados: sujeitos nos anúncios

Barnabé foi um trabalhador escravizado, e depois liberto, que viveu em Curitiba na segunda metade do século XIX e primeira do XX. Exercia o ofício de sapateiro. Seu senhor, um padre em São José dos Pinhais (João Batista Ferreira Bello), de quem Barnabé adotava o sobrenome, explorava indiretamente seu serviço, recebendo dele uma determinada quantia em dinheiro, que o sapateiro obtinha exercendo sua profissão. Barnabé tinha uma boa freguesia e vivia com muita autonomia em Curitiba. Por volta de 1880, o escravizado passou a recusar a entrega do dinheiro ao padre e este tentou vendê-lo para um fazendeiro produtor de café em Campinas, onde as condições de trabalho eram bem diferentes - e piores - do que as que o sapateiro experimentava em Curitiba. O escravizado resistiu a essa venda. Chegou a entrar com um processo judicial. Em 1885, quando já estava liberto, certamente em razão dos conflitos com seu ex-senhor, decidiu mudar de nome e fez esse anúncio no jornal:

O Dezenove de Dezembro, 18 de março de 1885, p. 3. O processo judicial movido por Barnabé contra seu senhor encontra-se no Arquivo Público do Paraná. Ação de Liberdade, Barnabé Ferreira Belo, 1880. BR PRAPPR PB045 PI7718.294.

Quer saber mais?

Você pode acessar as fontes que consultamos para elaborar esse conteúdo, que listamos a seguir.

Sobre os anúncios envolvendo pessoas escravizadas:

FREYRE, Gilberto. O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX. Recife: Imprensa Universitária, 1963.

CÂMARA. Juliana de Cássia. Escravos em fuga: histórias de escravidão e liberdade no Paraná provincial (1854-1888). Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação História). Curitiba, Universidade Federal do Paraná, 2013. http://www.humanas.ufpr.br/portal/historia/files/2013/12/TCC-JULIANA-CAMARA-FINAL.pdf (16/01/2020).

Sobre a trajetória de Barnabé Francisco Vaz:

MENDONÇA, Joseli M. N. Negros em Curitiba: experiências na escravidão. In: BARACHO, Maria Luiza.(org.) Presença Negra em Curitiba. Curitiba: Fundação Cultural, 2020. Disponível em http://www.fundacaoculturaldecuritiba.com.br/pub/file/pp_livro_presencanegra_web%20%281%29.pdf

SILVA, Noemi S. Entre letras e lutas: educação e associativismo no Paraná. In: MENDONÇA, Joseli M N., TEIXEIRA, Luana, MAMIGONIAN, Beatriz G. Pós-Abolição no Sul do Brasil - associativismo e trajetórias negras. Salvador: E. Sagga, 2020. Disponível em https://bgmamigo.paginas.ufsc.br/files/2020/06/MENDON%C3%87A-TEIXEIRA-MAMIGONIAN-orgs-2020-P%C3%B3s-Aboli%C3%A7%C3%A3o-no-Sul-do-Brasil.pdf (07/09/2023).

Como fazer a referência deste conteúdo: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ. PROJETO DE EXTENSÃO AFROCURITIBA. https://afrocuritiba.ufpr.br/mapa/ . Acesso em [data do acesso].

Foto publicada pelo Instituição de Educação de Educação do Paraná/Secretaria Estadual de Educação. Sem informação de data e autoria. https://www.aen.pr.gov.br/Noticia/Instituto-de-Educacao-do-Parana-comemora-145-anos-com-exposicao-virtual.

Palácio da Instrução: um lugar de ensinar e aprender

O prédio do Instituto de Educação do Paraná remete à importância que a população negra atribuía ao letramento e à educação formal. Já no período escravista, escravizados, livre e libertos consideravam que frequentar a escola - aprender a escrever e realizar operações matemáticas - era importante para se inserir de forma mais favorável na sociedade. Além de conferir distinção social, saber ler, escrever e fazer operações matemáticas eram habilidades que os auxiliavam a realizar os ofícios que desempenhavam nas cidades (sapateiros, pedreiros, carpinteiros, costureiros, etc.). Esse devia ser o caso de Raphael, rapaz escravizado que, na cerimônia de inauguração da escola depois de o prédio passar por uma reforma, recebeu dois “prêmios” pelo seu bom desempenho nas aulas: uma medalha e a alforria. Assim a Gazeta Paranaense noticiou o ocorrido:

Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=242896&pagfis=235 (16/08/2023).

No período posterior à Abolição, ler e escrever também era fundamental para o exercício dos direitos políticos, já que a legislação eleitoral colocava o letramento uma condição para votar.

Na escola que na época era denominada “Palácio da Instrução”, lecionou uma professora negra e estudou a primeira engenheira civil negra do Brasil. A professora foi Maria Nicolas, talvez a primeira mestra negra do Paraná, diplomada em 1916. Entre as muitas alunas que com ela aprenderam estava a Enedina Alves Marques. Enedina estudou no então Palácio das Instruções de 1926 até 1931, quando se diplomou como professora. Posteriormente, graduou-se em engenharia civil pela Universidade Federal do Paraná. Como engenheira, participou da execução de importantes projetos em Curitiba, dentre eles, o do Colégio Estadual do Paraná, da Casa dos Estudantes Universitários (CEU), da Biblioteca Pública do Paraná e da Usina Hidrelética Capivari-Cachoeira.

Fontes Históricas

1 - Registros fotográficos

Professora Maria Nicolas. https://museuafroparanaense.wordpress.com/2016/02/23/professora-maria-nicolas/ (16/01/2020).

Enedina Alves Marques. Foto sem informação de autoria, sem data.

Enedina, quando atuava profissionalmente como professora. Disponível https://www.buildin.com.br/enedina-alves-marques/ (16/01/2020).

2 – Registros da valorização da escolarização por pessoas escravizadas

Mapa da escola noturna regida pelo professor Damaso Correia de Bittencourt, Curitiba, 1874 Arquivo Público do Paraná. AP 447, p. 43. Na primeira coluna constam os nomes dos alunos, que tinham todos a condição de escravizados. A essa seguem-se as colunas que indicam a idade, estado civil, nome do senhor, profissão e cor. Na coluna de “Observações” houve um registro indicando “liberto”.

Memórias

Histórias negras e a luta pela igualdade racial

Recentemente, os movimentos pela igualdade racial têm enfatizado a importância de conhecermos a história pessoal de homens e mulheres negras. Nesse sentido, a memória de Enedina Alves Marques tem sido frequentemente evocada para ressaltar sua trajetória de conquistas profissionais, como na homenagem prestada pela Universidade Federal do Paraná, à sua ilustre aluna. Você pode acessar essa homenagem vendo uma matéria divulgada pela TV UFPR, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=p3wpczJM2jg (16/01/2020).

Como fazer a referência deste conteúdo: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ. PROJETO DE EXTENSÃO AFROCURITIBA. https://afrocuritiba.ufpr.br/mapa/ . Acesso em [data do acesso].

https://www.fotografandocuritiba.com.br/2017/07/sociedade-operaria-beneficente-13-de.html (15/08/2023)

Solidariedade e Sociabilidades

Na Rua Clotário Portugal, ao final da Alameda Princesa Isabel, fica uma das mais antigas sociedades formadas por pessoas negras no Brasil do pós-Abolição. A “Treze de Maio”, como ficou conhecida, foi fundada em 6 de junho de 1888, na residência de um homem negro, João Batista Gomes de Sá, localizada na Rua do Mato Grosso (atual Comendador Araújo). Tinha como objetivos auxiliar os seus sócios em caso de pobreza e moléstia, bem como de promover o funeral quando a família não tivesse recursos para fazê-lo. Nesse sentido, conservava alguns aspectos da tradição constituída pela união em torno de irmandades, especialmente os de proteção e amparo nas dificuldades (ver Igreja do Rosário dos Pretos de São Benedito, neste roteiro). O estatuto também previa a realização de celebrações nos dias 13 de Maio, em comemoração à assinatura da Lei Áurea, e no 28 de Setembro, data que em 1871 foi promulgada a Lei do Ventre Livre. Assim, interessava aos fundadores e sócios da “Treze” preservar uma memória relacionada à conquista da liberdade, o que certamente tinha uma grande importância para pessoas o que certamente tinha uma grande importância para pessoas que, além da discriminação decorrente do racismo, eram associadas ao estigma da escravidão.

Após a Abolição, formaram-se por todos o país agremiações de negros intituladas “Treze de maio”. A que se formou em Curitiba é uma das poucas que se mantém em funcionamento ininterrupto até os dias atuais. A sede em que atualmente funciona foi construída em terreno cedido pela prefeitura no final do século XIX.

Ao longo de sua existência, a sociedade adquiriu diferentes denominações. Nos anos iniciais, algumas notícias na imprensa eram publicadas em nome do Club Treze de Maio; no estatuto de 1896 foi incorporado o termo “Beneficente”, ficando o nome Club Beneficente Treze de Maio; foi só na década de 1930 que a sociedade adotou a denominação “Operária”, tornando-se, então, Sociedade Operária Beneficente Treze de Maio, nome que permanece ainda hoje.

Fontes Históricas

Dezenove de Dezembro, 8 de maio de 1889.

Menos de um ano após a data da Abolição da escravidão, a Sociedade 13 de Maio denunciava no jornal o racismo com que tinha de confrontar, nesse caso, praticado por meio do recrutamento forçado de pessoas negras associadas.

Boletim do Arquivo Público do Paraná. Ano 6, n. 9, 1981. Esse registro mostra que a Sociedade mantinha uma escola noturna, reforçando o que se sabe sobre a importância que a educação escolar assumiu para a população negra, vista como uma maneira de integração mais favorável na sociedade e mesmo de ascensão social.  Ele também evidencia que quase dez anos depois da primeira denúncia feita pela associação, o recrutamento forçado continuava incidindo sobre os associados da “Treze”.

População negra ligada ao associativismo em manifestação pública na praça Tiradentes. Foto de Arthur Wischral feita provavelmente em 1913. Casa da Memória da Fundação Cultural de Curitiba. Embora a frente do estandarte não esteja visível, é provável que o grupo em primeiro plano, que o conduz, seja formado por pessoas associadas à Sociedade 13 de Maio. A imagem mostra a grande presença feminina. Embora não tivessem presença nas diretorias, as mulheres eram personagens importantes na agremiação, atuando por meio dos grêmios que organizavam, como o das Camélias e o Flor de Maio. A imagem mostra a grande presença feminina. Embora não tivessem presença nas diretorias, as mulheres eram personagens importantes na agremiação, atuando por meio dos grêmios que organizavam, como o das Camélias e o Flor de Maio. Fotografia sem informação de autoria e data. Acervo da Fundação Cultural de Curitiba.

Memória

Embora tenha admitido pessoas brancas na agremiação, a maior parte dos sócios-fundadores da Sociedade 13 de Maio e de seus primeiros associados era formada por negros que haviam vivenciado a experiência da escravidão até poucos anos antes da Abolição. Entre eles, Vicente Moreira de Freitas, que, desde quando escravizado, exercia o ofício de pedreiro e que se tornou liberto em 1884. A família de Vicente até hoje guarda com orgulho lembranças de seu antepassado; entre outras, fazem menção ao fato de ele ter sido um dos fundadores da “Treze”, de ter tido participação importante em outra agremiação – a Sociedade Protetora dos Operários – e de, na década de 1880, ter trabalhado nas obras de reconstrução da Catedral de Curitiba – então Igreja Matriz de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais.

Vicente Moreira de Freitas - fotografia sem data, feita por Clarissa Grassi a partir da fotografia dos túmulos no Cemitério Municipal de Curitiba.

Um território negro na cidade

Até hoje a Sociedade Operária Beneficente 13 de Maio permanece como um território negro na cidade de Curitiba, promovendo atividades culturais e de mobilização importantes. Entre os eventos que valorizam a identidade negra na cidade estão as comemorações do 13 de maio.

Também os eventos festivos denominados Um Baile Bom, além de oportunizar o encontro, o lazer, a sociabilidade e o empoderamento de pessoas negras de Curitiba – jovens, na maioria – configuram uma territorialidade negra na cidade. Na perspectiva da história, esses eventos mantêm vivos e ressignificam os objetivos que levaram homens e mulheres negras a criarem espaços de sociabilidade e de luta no contexto do Pós-Abolição, representando a força viva e atual da história da presença negra em Curitiba.

Facebook –Sociedade 13 de Maio. https://www.facebook.com/soc13demaio/?locale=pt_BR (15/08/2023).

ROCHA, Flávio. s.s. Um Baile Bom: música, identidade e empreendedorismo negro. Brasil de Fato, 22/04/2017. https://www.brasildefatopr.com.br/2017/04/22/um-baile-bom-musica-identidade-e-empreendedorismo-negro

Quer saber mais? Você pode acessar as fontes que consultamos para elaborar esse conteúdo e outras mais que listamos a seguir.

Sobre a Sociedade 13 de Maio de Curitiba:

FABRIS, Pamela B. Sociedade Operária Beneficente 13 de Maio (verbete). Dicionário AfroSul https://afrosul.com.br/sociedadetrezemaio/

FABRIS, Pamela B.; HOSHINO, Thiago A. P. Sociedade Operária Beneficente 13 de Maio: mobilização negra e contestação política no Pós-Abolição. In: MENDONÇA, Joseli M. N. e SOUZA, Jhonatan Uewerton. (orgs.) Paraná Insurgente – História e Movimentos Sociais, século XVIII ao XXI. São Leopoldo: Casa Leiria, 2018. http://www.humanas.ufpr.br/portal/paranainsurgente/paranainsurgente.html

FREITAS, Nei Luiz Moreira de. Celebração do 13 de Maio: subsídios para elaboração de uma proposta de registro de patrimônio cultural imaterial. Monografia de Conclusão de Curso. UFPR, 2018.

HOSHINO, Thiago A. P.; FIGUEIRA, Miriane. Negros, libertos e associados: identidade cultural e território étnico na trajetória da Sociedade 13 de Maio (1888-2011). Curitiba: Fundação Cultural de Curitiba, 2012.

SANTIAGO, Fernanda L. Sociedade 13 de Maio: uma estratégia de sobrevivência no Pós Abolição (1888-1896). Monografia de Conclusão de Curso. UFPR, 2015. http://www.humanas.ufpr.br/portal/historia/files/2015/07/MONOGRAFIA-FERNANDA-L-SANTIAGO.pdf

Lembranças que  família de Vicente Moreira de Freitas preserva sobre seu antepassado pode ser conhecida em entrevista realizada pela equipe do projeto com a Senhora India Fabre. https://afrosul.com.br/india-maria-freitas-fabre/

Aspectos da trajetória associativa de Vicente e seus descentes estão publicados em: MENDONÇA, Joseli M. N. e FABRIS, Pâmela B. Freitas e Brito: trajetória de uma família negra na Curitiba do final do século XIX e início do XX. Pós-abolição no sul do Brasil. Associativismo e trajetórias negras. Salvador: Sagga, 2020, pp. 227-248. https://afrosul.com.br/wp-content/uploads/2019/11/livro_PosAboli%C3%A7aoNoSul2.pdf

Uma trajetória de João Batista Gomes de Sá, em cuja casa foi fundada a Sociedade 13 de Maio: FABRIS, Pâmela B. João Batista Gomes de Sá (verbete). Dicionário AfroSul. https://afrosul.com.br/joaobatistagomesdesa/

Como fazer a referência deste conteúdo: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ. PROJETO DE EXTENSÃO AFROCURITIBA. https://afrocuritiba.ufpr.br/mapa/ . Acesso em [data do acesso].

Praça Zacarias. Fotografia de J. M. Guimarães. 25/ 12/2009. Disponível em https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Pra%C3%A7a_Zacarias_em_Curitiba.JPG (15/08/2023).

No Chafariz, trabalho e sociabilidades

Na década de 1870, esse local era conhecido como Largo Zacarias, mas também como Largo do Mercado ou Largo da Ponte. Ali, em 1871, foi instalado o chafariz que observamos na praça atualmente.

Em 1882, a Gazeta Paranaense publicou uma matéria de opinião referindo-se a presença negra nesse espaço. A seguir, um fragmento dela:

Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/242896/5 (05/01/2023).

Essa matéria evidencia dois aspectos importantes na incursão que estamos fazendo pelo espaço urbano da Curitiba do século XIX. Um deles é a demonstração da presença de trabalhadores na praça (denominados na matéria “soldados”, ou seja, que recebiam soldo, remuneração). Entre esses, a matéria menciona trabalhadores negros, que poderiam ser escravizados, libertos ou livres e que conviviam com colonos naquele espaço urbano. Esses trabalhadores exerciam um dos muitos ofícios que as pessoas negras realizavam nas cidades no século XIX: coletavam água no charafiz e a transportavam até os locais de moradia ou trabalho dos moradores, uma vez que não havia um sistema de canalização para realizar o abastecimento urbano. Essa era uma atividade muito importante para o funcionamento da cidade. O chafariz era, portanto, um local de trabalho para pessoas negras que trabalhavam na cidade. Mas era também um local de encontro, espaço para conversar, informar-se sobre o que ocorria na cidade, para se divertir.

Outro aspecto que podemos distinguir na leitura da matéria diz respeito às dificuldades vivenciadas por esses trabalhadores. Como é possível observar, eles eram vistos de forma muito negativa, considerados sujeitos perigosos, suspeitos que deveriam ser alvos preferenciais da ação policial. Enfrentavam, portanto, no seu dia-a-dia preconceito e discriminação.

O Chafariz e o Engenheiro Negro  

O chafariz exposto na Praça Zacarias evidencia também a importância de profissionais que trabalharam na construção da cidade realizando obras de grande complexidade. O artefato, que atualmente está na praça como elemento decorativo, no século XIX fez parte de um projeto de canalização da água realizado pelo engenheiro negro - Antônio Pereira Rebouças Filho.

Antonio Pereira Rebouças Filho. Foto sem indicação de autoria e data. http://ilustresdabahia.blogspot.com/2014/06/antonio-pereira-reboucas-filho.html (10/03/2019)

Nascido na Bahia, Antônio Rebouças estudou na Escola Militar no Rio de Janeiro, mas teve grande parte sua vida profissional constituída no Paraná, onde chegou em 1864, para coordenar trabalhos na Estrada da Graciosa. Na província ele construiu várias pontes, realizou obras portuárias e trabalhou nos projetos iniciais da ferrovia Curitiba-Paranaguá, de cuja construção não chegou a participar, por ter morrido muito precocemente, em 1874.

O chafariz da Praça Zacarias, assim, nos diz sobre negros que, de maneiras diversas participaram da construção e do funcionamento da cidade.

Memórias

I- Imagem antiga mostra uma das maneiras usadas para levar água até as residências e estabelecimentos comerciais, no início do século XX.

Chafariz do Largo Zacarias, no início do século XX. Imagem publicada em DESTEFANI, Cid. Nostalgia. Serviço Público na Zacarias. Gazeta do Povo publicada pela 09/08/2008. https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/colunistas/nostalgia/servico-publico-na-zacarias-b4bhq44o9aa67wogm52699xla/ (Acesso 31/10/2019)

II - As andanças do chafariz. Em depoimento à Gazeta do Povo em julho de 2017, Júnio Ferreira, então coordenador da área de patrimônio da Companhia de Saneamento do Paraná (SANEPAR), contou que o chafariz esteve na praça até 1939, quando foi retirado e guardado no Museu Paranaense. Em 1968 voltou à praça, mas com função estética apenas.

Foto Arquivo SANEPAR, s.d. (Provavelmente anos 1960), publicada pela por Sharon Abdalla. Chafariz da Praça Zacarias guarda memórias de uma Curitiba “sem água”. Gazeta do Povo, 10 de julho de 2017, disponível em https://www.gazetadopovo.com.br/haus/urbanismo/chafariz-da-praca-zacarias-guarda-memorias-de-uma-curitiba/ (09/03/2018)

Quer saber mais? Você pode acessar as fontes que consultamos para elaborar esse conteúdo e outras mais que listamos a seguir.

PENA, Eduardo Spiller. O jogo da face: astúcia escrava frente aos senhores e à lei na Curitiba provincial. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1999. (esse livro traz várias experiências de trabalho de africanos e descendentes que, como escravizados, libertos ou livres, trabalharam e viveram na Curitiba do século XIX).

GRINBERG, Keila. O fiador dos brasileiros – cidadania, escravidão e direito civil no tempo de Antonio Pereira Rebouças. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. (trata da vida pública de Antônio Rebouças, pai do engenheiro a que o texto se refere).

TRINDADE, Alexandro. André Rebouças: Um Engenheiro do Império. Alexandro Dantas Trindade. São Paulo: Editora Hucitec, 2011. (esse livro aborda aspectos relativos ao irmão de Antonio Rebouças. Ambos, André e Antonio Rebouças trabalhavam de forma muito próxima).

Se você tiver mais informações, materiais ou referências sobre esse local e quiser colaborar, envie pra afrocuritibapercurso@gmail.com .

Como fazer a referência deste conteúdo: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ. PROJETO DE EXTENSÃO AFROCURITIBA. https://afrocuritiba.ufpr.br/mapa/ . Acesso em [data do acesso].

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