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Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de São Benedito

Publicado em 10 de setembro de 2023

Devoção Religiosa e Sociabilidades

Edificação atual da Igreja do Rosário dos Pretos de São Benedito, sem data, sem autoria. https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Igreja_do_Ros%C3%A1rio,_Curitiba,_PR.JPG (acesso 24/04/2020).

A edificação original da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de São Benedito foi construída, ao que consta, em 1737, por duas irmandades, das quais participavam pessoas negras. Para que uma irmandade funcionasse, era preciso encontrar uma igreja que a acolhesse ou construir uma própria. Seu atual prédio da igreja não é o original, que foi demolido em 1937 e reconstruído da forma como o vemos hoje.

Primeira edificação da igreja, representada por Oswald Lopes. Igreja do Rosário. Óleo sobre tela, 70×96,5, 1938, acervo Museu Oscar Niemayer (Curitiba). Essa fotografia da obra, sem título e sem data, está divulgada em FOTOGRAFANDO CURITIBA (Página Facebook) http://www.fotografandocuritiba.com.br/2016/09/igreja-do-rosario-dos-homens-pretos-de.html . Acesso em 23/04/2020.

Edificação original da Igreja do Rosário dos Pretos de São Benedito, vista da atual Praça Garibaldi. Fotografia sem data e sem autoria. CASA DA MEMÓRIA – FUNDAÇÃO CULTURAL DE CURITIBA. Na fotografia não consta informação de data e autoria.

Cartão Postal sem data e sem autoria, com a imagem da edificação original da Igreja do Rosário e anotações de Júlia Wanderley, que a considerava a “mais antiga da cidade”. CASA DA MEMÓRIA – FUNDAÇÃO CULTURAL DE CURITIBA. Acervo Júlia Wanderley.

A Igreja, então, abrigava as pessoas que faziam parte das irmandades de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito. Mas afinal, o que era uma irmandade?

Desde o período colonial, principalmente a partir dos séculos XVII e XVIII, era comum na América Portuguesa que as pessoas se agregassem em irmandades religiosas, instituições leigas (formadas por pessoas não ligadas ao clero) organizadas em torno da devoção a algum santo ou santa. Estes grupos prestavam auxílio aos irmãos em dificuldades, com recursos providos por eles próprios, acumulados geralmente pelas taxas pagas quando da admissão e de contribuições anuais. A mais importante dentre elas foi a Irmandade Santa Casa de Misericórdia, que atendia doentes, recebiam expostos (crianças abandonadas) e leprosos.

Naquela sociedade, na qual as hierarquias eram rígidas, muitas irmandades não aceitavam pessoas de origem ou ascendência africana, tampouco escravizadas. Esses grupos, por vezes, criaram irmandades específicas, que os acolhessem. Isso não significa que essas irmandades fossem mais “democráticas” – uma ideia que nem vigorava à época -, pois muitas delas também impunham restrições à entrada de grupos específicos. Essas restrições podiam estar relacionadas, ao grupo étnico. Havia, por exemplo, irmandades que só aceitavam africanos originários de Angola, outros que só aceitavam jejes – um grupo da África Ocidental. Outras vezes, não se restringia o ingresso de grupos específicos, mas sim o exercício de cargos da mesa diretora. As Irmandade do Rosário, que se formou em Curitiba no século XVIII, embora tivesse importante participação de pessoas negras – escravizadas, livres e libertas –,  acolhia como irmãos também pessoas brancas, inclusive senhores de escravos.

Pertencer a uma irmandade implicava em distinção social, além de ser uma medida de segurança em relação ao futuro. Entre as obrigações impostas aos irmãos estava a de ampararem-se mutuamente em caso de doenças e prover a todos os participantes um sepultamento cristão. Por vezes, a compra da alforria de irmãos escravizados era também um objetivo das irmandades das quais eles faziam parte; na segunda metade do século XIX, quando as ideias abolicionistas se fortaleceram, esse objetivo foi mais bastante valorizado, e as irmandades configuraram-se como importantes mediadoras na emancipação de escravizados. As irmandades eram também lugares de celebração e festividades, realizadas para os santos de devoção, e espaços de convivência e de construção de sociabilidades para os que nelas congregavam. No Brasil, as devoções mais populares entre os negros foram as de Nossa Senhora do Rosário, de São Benedito, São Sebastião, São Elesbão, N. S. do Carmo, Santa Ifigênia. Por todo o país até hoje existem igrejas que no passado foram construídas por irmandades de devoção a esses santos e permanecem associadas à história da população negra nas localidades. Esse é o caso da A Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos e de São Benedito de Curitiba.

Fontes

O Compromisso

Para funcionar, as irmandades tinham de submeter às autoridades (coloniais e, depois, imperiais) um documento chamado Compromisso, no qual dispunham os objetivos que teriam de cumprir e a maneira como se organizariam. A seguir, transcrevemos um pequenos trecho do Compromisso das Irmandades de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito de Curitiba, aprovado em 1851 por uma autoridade da Província de São Paulo, da qual Curitiba fazia parte à época. Esse fragmento evidencia alguns aspectos sobre a maneira como os irmãos compreendiam a irmandade, como era feita a admissão de um irmão e algumas obrigações que os irmãos assumiam ao adentrar na instituição:

“Em nome da Santíssima Trindade, Padre, Filho, e Espírito Santo Três pessoas distintas, e um só Deus verdadeiro, e da Virgem Senhora do Rosário, e Glorioso S. Benedito, os quais tomamos por nossos advogados n’esta empresa; e por este princípio lhes pedimos que roguem a Deus por nós a fim de que tudo quanto ordenamos nos Capítulos seguintes, e seja para maior honra, e glória Sua, e aumento de nossa Santa Fé, e salvação de nossas almas assim seja.

[…]

Capítulo 1º  Do modo que se há de praticar na recepção dos Irmãos. Toda pessoa que quiser ser Irmão de qualquer destas duas Irmandades de Nossa Senhora do Rosário, e do Glorioso S. Benedito se apresentará em mesa das mesmas Irmandades, e indicará ao Presidente por palavras, ou por petição que quer ser recebido por Irmão; o qual conhecendo que é Cristão, e informado de seus costumes o aceitará, e mandará pelo Escrivão lançar seu nome no livro de grades para isso destinado, e depois de lidos os Capítulos do presente Compromisso para serem por ele obedecidos, e observados, e dará cada um por sua entrada trezentos e vinte réis, e no fim do ano dará seu anual cento e sessenta réis, os quais se pagarão no dia da festividade da Gloriosa Virgem, e do Glorioso Santo, cuja esmola será cobrada pelo Irmão Procurador, que será obrigado a dar contas delas para serem por receita feita pelo Irmão Escrivão ao Irmão Tesoureiro da Irmandade, e o Irmão que se reconhecer remisso na paga e o não fizer sem motivos atendíveis será riscado e expulso da Irmandade salvo porém se cair em pobreza, e nessa caso será conservado, e gozará dos benefícios da Irmandade.

Capítulo 2º – Morrendo algum Irmão ou Irmã, se dará recado ao Irmão que servir de Procurador, o qual será obrigado a dar parte a todos os Irmãos, que se acharem na cidade, ou perto dela, e correrá a Campa [sineta, pequeno sino] da Irmandade para se reunirem na Igreja da mesma Senhora, d’onde sairão com a cruz da Irmandade, [a] qual levará o Irmão Sacristão, e os mais Irmãos à Tumba, e se necessário for, e com toda a modéstia e compostura irão em corpo da irmandade com suas opãs [vestimentas usadas pelos irmãos e irmãs; capas] à porta, onde estiver o corpo do Irmão defunto, e feita a encomendação pelo Reverendo Pároco, o carregarão e acompanharão até a sepultura, e todo o Irmão que for remisso em ir aos acompanhamentos será expulso, e riscado da Irmandade; exceto os que tiverem legítimo impedimento, e serão obrigados a levar velas em ditos acompanhamentos e procissões.

[…]

Capítulo 4º – Nos dias vinte e seis de dezembro, tem sido costume fazer a Irmandade os festejos solenes de Nossa Senhora do Rosário […] Capítulo 16º – Nos dias vinte e sete de dezembro tem sido sempre costume festejar solenemente o glorioso S. Benedito […].

História e Memória

Na década de 1880, a Igreja do Rosário dos Homens Pretos de São Benedito tornou-se a Matriz de Curitiba, cuja edificação passou por uma reforma drástica, que inviabilizava a frequência de pessoas. Ampliaram-se, assim, os grupos sociais que a frequentavam a “igreja dos pretos”. Talvez se inicie nesse tempo um processo de apagamento da relação entre a velha igreja e as pessoas negras de Curitiba.

Na primeira metade do século XX, a Igreja era utilizada para velar os falecidos, pelo quê passou a ser designada “Igreja dos Mortos”. Certamente isso ocorria pela maior proximidade e acessibilidade ao cemitério, ao qual se chegava percorrendo a rua lateral, à esquerda na foto (atual Trajano Reis).

CURITIBA NAQUELES IDOS (BLOGSPOT). http://curitibanaquelesidos.blogspot.com/2015/01/igreja-do-rosario-semana-santa-de-1934.html . acesso em 23/04/2020. A publicação informa que a imagem foi produzida na Semana Santa de 1934, quando da Procissão do Senhor Morto.

No ano de 1937, ano de demolição do templo colonial e edificação do novo, a Igreja do Rosário foi objeto de várias matérias nos jornais locais. A seguir, uma delas:

O DIA. A Nova Igreja do Rosário. http://memoria.bn.br/DocReader/092932/34884. Acesso em 1122/08/2021.

É interessante observar que a nota, ao fazer o histórico da Igreja, além de incidir em imprecisões – como a que considera que foi o primeiro templo da cidade – não a associa à população negra de Curitiba, tampouco às irmandades que a construíram. Sobre os negros e as irmandades recaia já o esquecimento, que orientara o jornalista e para o qual ele próprio contribuiu, com a memória que constituía e veiculava por meio do jornal.

Essa memória, entretanto, não foi apagada pelas pessoas negras cuja história se conectava com a história da igreja. A cada ano, até hoje em dia, a data da lei que proibiu a escravização de pessoas no Brasil é relembrada pelos sócios da Sociedade Beneficente 13 de Maio (ver ponto no mapa) com uma missa celebrada na Igreja do Rosário e São Benedito.

DIÁRIO DA TARDE, 12 de maio de 1913. http://memoria.bn.br/DocReader/800074/17039. acesso em 11/09/2022.

Atualmente, na data de 20 de novembro, pessoas de religiões de matriz africana lavam as escadarias da Igreja, em comemoração à data da Consciência Negra.

PREFEITURA MUNICIPAL DE CURITIBA. www.curitiba.pr.gov.br/noticias/festa-do-rosario-leva-o-axe-do-povo-negro. Acesso em 09/09/2023.

Manifestações antirracistas em defesa da justiça racial também recorrem ao espaço da igreja, que é reconhecido como um território de resistência negra na cidade.

Manifestante pede que seja feita justiça ao trabalhador congolês Moïse Kabagambe, assassinado por motivação racista em outubro de 2022. JORNAL BRASIL DE FATO. GIORGIA PRATES. https://www.brasildefato.com.br/2022/02/07/ato-por-justica-para-moise-foi-realizado-em-igreja-simbolica-para-populacao-negra-de-curitiba . Acesso em 09/09/2023.

Se você quiser saber mais sobre esse assunto, pode acessar as fontes que consultamos para elaborar esse conteúdo e outras mais que listamos a seguir.

 A Carta de confirmação do compromisso das Irmandades de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito da cidade de Curitiba. foi publicada no Boletim do Arquivo Público do Paraná. Ano 02, n 01, 1977, p. 29 e seguintes.

 A produção acadêmica sobre as irmandades de pessoas negras é bastante extensa e enseja um intenso debate sobre o significado que essas instituições tiveram na sociedade escravista. A seguir, apenas alguns títulos:

Abordagens mais geral das irmandades:

REIS, João José. A Morte é Uma Festa. Ritos fúnebres e revolta popular no Brasil no século XIX. São Paulo: Companhia das Letras. 1991 e RUSSEL-WOOD, A. J. R., Escravos e libertos no Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

Um estudo sobre a Irmandade do Rosário de Curitiba: LIMA, Carlos A.M. Escravos da Senhora do Rosário: Irmandades negras na América Portuguesa. In: MOURA, Ana Maria da Silva e LIMA, Carlos A.M. Devoção & Incorporação – Igreja, escravos e índios na América Portuguesa. Curitiba, Peregrina, 2002.

Um texto sintético as irmandades negras em geral e analítico sobre a Irmandade do Rosário na cidade de Desterro (atual Florianópolis): MALAVOTA, Claudia Mortari. A Irmandade do Rosário e seus Irmãos africanos, crioulos e pardos. https://moodle.ufsc.br/pluginfile.php/545530/mod_resource/content/2/B4%20Irmandade%20Rosario%20pdf.pdf

Como fazer a referência deste conteúdo: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ. PROJETO DE EXTENSÃO AFROCURITIBA. https://afrocuritiba.ufpr.br/mapa/ . Acesso em [data do acesso].

Se você tiver mais informações, materiais ou referências sobre esse local e quiser colaborar, envie pra afrocuritibapercurso@gmail.com


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